quinta-feira, 29 de julho de 2010

prolongamento


no tempo em que as festas não acabavam
os risos se enfeitavam feito pássaros.
a alegria se arrastava na longa preguiça
dos afetos
e o amor era uma espécie de descanso.

minha irmã, ao pé de tudo,
inundava a casa de sabores
e olfato.

canta lá mais uma vez esse refrão!
e a vida ia, carinhosa.

houve um tempo em que as festas aconteciam
e ninguém se culpava por isso.
tempo de suores sem remorso.
da gente resmungando de saudade.

cara de fernando diegues
palavra de victor valente

segunda-feira, 26 de julho de 2010

capitu


não por mim.
mas em que mundo crescerá minha irmã?

é tanta espera. tanto alarde.
se essa rua fosse minha...
fosse dela!

nos olhos redondos - três anos incompletos -
vejo a minha vida inteira.
negros como a noite,
escondem qualquer coisa minha
e me passam adiante.

em que mundo crescerá minha irmã?
macambúzio, eu me pergunto.
em que mundo?
em que mundo há de habitar a minha história,
derramada naqueles olhos?


cara de fernando diegues
palavra de victor valente

quinta-feira, 22 de julho de 2010


vão


primeiro, negamo-nos às vozes do tempo e tornamo-nos
surdos.

- perdemos a história.

em seguida, calamos nossa própria voz, ferimos nossa
própria língua.

depois, aprendemos a matar.
e matamos nossos filhos e a terra negou-se a nós,
fechando-se em dolorosa espera.

assim, pouco a pouco, vemos a vida transformar-se
em qualquer coisa aquém da vida.
e vemos os homens e já não conseguimos
reconhecê-los como homens.

em gotas de sangue o tempo escorre.

cara de fernando diegues
palavra de victor valente

segunda-feira, 19 de julho de 2010

alaranjado


vai dar praia
no cheiro do sal
no sal das pernas
no mel das moças
no mal das horas
do céu das cores…
vai da calma nessa cama
que adia…
um soluço vem da alma
e acorda o dia,
que demora…
vai dar praia…
essa chuva que perfuma é lá de fora,
mas cá dentro o que dá só se ilumina,
se mareia, se areia, se amansa, se afina…
se cansa…
vai dar praia.
se não der, dá poesia.


cara de fernando diegues
palavra de victor valente

quinta-feira, 15 de julho de 2010

oração a santa clara

santa clara,
olha os meus amigos
como quem olha o próprio filho.
a mim não peço nada que não seja
o cuidado daqueles que mais gosto.
beija a face dos amantes,
a boca dos indecentes.
leva em tua guarda os embriagados
de concreto, silêncio e dúvida.
alimenta a febre dos desesperados,
a fome dos desiludidos.
vela por esses poucos que me valem,
garantindo-lhes diariamente a dor de um parto.

é daí que a vida nasce.



cara de fernando diegues
palavra de victor valente

segunda-feira, 12 de julho de 2010


itinerário


os dias dos meus anos se contam em riso.
são os caminhos que me cortam a cara,
feito o mar que me corre à deriva.
que é mar o que me alimenta a vida.
é mar, pelas veias, pele e ossos.
pelos dentes, voz e pêlo.

os dias dos meus anos me rasgam ao meio,
feito a onda do mar que castiga:
é frio do mar quando chove,
é brilho do mar quando é dia.




cara de fernando diegues
palavra de victor valente

quinta-feira, 8 de julho de 2010


poética


que eu não me torne meu cansaço
e que não seja ele a desculpa para o perdão que não peço
e para o bem que não faço.

que eu não comungue da mediocridade alheia.
quero a fidelidade do olhar sincero:
como as crianças, uma vida engarrafando nuvens.

que eu viva meus defeitos ao extremo de amá-los.
que me sejam eles a única posse,
minha estrada para o mundo.

que meus olhos não me alcancem.
em verdade, nem me sigam.
quero o sonho indecifrável dos que ouviram as estrelas
e amanheceram cantando.




cara de fernando diegues
palavra de victor valente

segunda-feira, 5 de julho de 2010

a turba


lá vai o bloco
entorpecendo os passantes
e desviando olhares.

quem há de mirar a calçada?
a moça é bela e o dia é lindo...

os doidos de perfume e ócio
ignoram os bancos e as suas filas,
esquivam-se da dura realidade
sem remédio.

melhor a avenida!
ébria deusa dos anônimos.
por ti, o cortejo dos fiéis
sem rosto e sem nome.

- a marcha fúnebre
dos que julgam caminhar ao paraíso.


cara de fernando diegues
palavra de victor valente

quinta-feira, 1 de julho de 2010


aos meus pés

deito os pés na terra
como quem se deita,
como quem reza o terço.
piso o chão
como se o chão fosse uma casa
onde moram os homens.
onde moram os dias.
é sagrado esse chão que a alma pisa
e que me acolhe feito um filho.
tenho os pés descalços porque mereço.
porque a saudade me acompanha,
como se a vida fosse um lugar possível
e como se a cada passo dado
Deus me mostrasse o botão do seio.


cara de fernando diegues
palavra de victor valente