segunda-feira, 29 de novembro de 2010

encontro marcado

pinto quadros sobre a pele.
marco meu corpo com a marca dos proprietários,
feito gado.

(pertenço ao que sinto)

retrato em mim pedaços de dentro,
o som das coisas quando me anoitece.
corto a carne como quem corta o silêncio.




Cara de Fernando Diegues
Palavra de Victor Valente

quinta-feira, 25 de novembro de 2010


o receptivo

abrir as portas da alma
feito uma criança a desvendar presentes.
feito um louco a memorar mistérios.

marcas da memória...

um velho à praça,
é o que sou.
absorto em tudo que passa.


Cara de Fernando Diegues
Palavra de Victor Valente

segunda-feira, 22 de novembro de 2010


comum de dois

 
deixa-me morrer na tua cor
vermelho enigma.
deixa-me gozar dos teus andrógenos
mistérios,
provar dos teus venenos.

fêmea prudente e forte das ambulâncias,
moça discreta das salas de cinema.

varão cor de bandeira, sangue e dúvida,
vida e morte em olhos de malícia.

eu imploro.

mostra-te, coração,
inteiramente nua.
batendo no meio da rua,
gritando desvairada de desejo.


Cara de Fernando Diegues
Palavra de Victor Valente

quinta-feira, 18 de novembro de 2010


três de setembro

coisas de minha mãe.
esse desprezo pelas datas,
pelos dias sem trabalho.
é dela, esse afeto em reclamar da vida.
de tudo que a vida dá.
é de minha mãe essa felicidade nos gestos.
esse gosto em falar demais, demais…
esse prolongamento das festas.

é meu e dela,
ambos grávidos de perdão.
grávidos do amor que demonstramos em silêncios
perceptíveis ao olho nu.

é teu, mulher,
gestando,
em nove meses, o segundo passo.
que a vida é um prolongamento.
toda ela,
uma estrada que deságua
e dói.

Cara de Fernando Diegues
Palavra de Victor Valente

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

metalinguístico
bebo o teu sobejo e beijo a boca.
mais de mim, a sós, nós dois.
sóis derramando alegria.
devagar? nem sempre.



cara de fernando diegues
palavra de victor valente

sábado, 13 de novembro de 2010

E=mc²

O tema da transformação é recorrente em nosso trabalho. Essa mutabilidade das coisas encontra-se, mais ou menos evidente, em cada uma de nossas postagens e, acima disso, nas relações de sentido que propomos entre as composições. Mas nada que se compare ao exercício desta primeira série.

O que tentamos aqui foi estabelecer um percurso que se clareasse enquanto percorrido e que ao mesmo tempo, a partir do novo, propusesse releituras do que já fora visitado. Dessa forma, caras e palavras brincam com o focado e o desfocado, aguçando o olhar para o periférico, o escuso. Impressões iniciais vão sendo reforçadas e reescritas numa mesma dança.

Elementos que nos sugiram o passo estão aos montes: o fogo, elemento modificador por excelência, aquele que molda o vidro, funde o ferro, mas que renega à história os livros da Biblioteca de Alexandria - fazedor e aniquilador de coisas; a madeira esculpida num rosto de Cristo como elemento tranformado pelo homem - note que as formas velha e nova comungam, num possível esforço de revelar justamente um processo. Mesmo a bíblia em contraste com esse Cristo aponta estradas de ida e volta.

Assim, temos na primeira composição o rosto triste de um Jesus morto sendo traduzido em canto fúnebre - quantas vezes nos deixamos morrer ao longo da vida?, quantas vezes, mortos, nos permitimos a reinvenção de um Pentecostes?, nos pergunta a imagem desolada.

A segunda composição, talvez a mais desafiadora, evidencia a proposta de mudança: as folhas consumidas pela chama revelam-se em cinza. Entretanto, não há aqui o tom melancólico inicial, o poema nos coloca versos delicados, em que as lagartas do passado, futuras borboletas, ensinam mais que o "um tempo para cada coisa" do livro do Eclesiástico: talvez o sabor da vida seja mesmo reaprender, sempre, a viver - ensinam mais porque partem daquilo que foi, efetivamente, experimentado e é preciso, para isso, como as folhas, lançar-se ao fogo.

Quando seríamos, finalmente, colocados diante de um possível desfecho, volta-se novamente, ao princípio. O poema é uma clara alusão ao Caronte grego, o barqueiro que, depois de devidamente pago, leva os mortos a seu destino. Só que aqui o contexto de morte é reescrito. O que se propõe, na verdade, é uma releitura do que foi experienciado, não como repetição ou aprisionamento - não se olha duas vezes o mesmo rio, por nós e pelo rio, é sempre bom lembrar -, mas como busca daquilo que, em nós, nos leva.
Vale perceber que todos os elementos até então relevantes estão contemplados pela imagem, agora, é claro, assumindo nova forma.
Não foi, enfim, o caso de configurar leituras religiosas através de bíblias, Cristos e Pentecostes, mas de, através desses elementos - porque são eles muito vivos para os autores, cada um a seu modo - , aguçar os sentidos para novos rumos e sabores, todos, ironicamente, já tão nossos.


Um beijo,


fernando diegues

victor valente









quinta-feira, 11 de novembro de 2010

E=mc² - parte final


intermitente

 
para voar por sobre os campos férteis
do juízo,
para despir-me,
descosturar-me a cara e o avesso
eu preciso, antes de tudo,
navegar.

e perder-me em mar revolto.
e amparar-me em vento calmo.

eu preciso (sim, preciso!) de um barco.
um barco que me leve ao início,
ao princípio daquilo que me leva.


Cara de Fernando Diegues
Palavra de Victor Valente

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

E=mc² - parte 2

um momento, por favor


quando pequeno, colecionava lagartas.

era tão bonito vê-las em seu
lento raciocínio,
a vida seguindo à beira do pote...

- pouco a pouco parava, também, o tempo em mim,
como se nos irmanássemos em preguiçosa espera.

colecionar lagartas deixou marcas
tão prementes em minha memória
que nem o livro do eclesiastes,
anos depois, conseguiria.



Cara de Fernando Diegues
Palavra de Victor Valente

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

E=mc² - parte 1

réquiem


levo mortes demais comigo.

assassinado à rua,
aos olhos do imbecis,
nada fiz.

vi meu corpo derramado
em teatros e repartições,
em praças e passeios públicos.

velei meu sangue pelos muros,
bares e igrejas,
à revelia dos padres
e dos bêbados.

morto.
tantas vezes desperdiçado
o pranto,
a voz emudecida
em gritos de demência,
sem resmungos de prece
ou busto em avenidas.

o que deixei de mim,
mais, talvez, que a lembrança de um
sorriso?

aos desvalidos,
aos desajeitados,
às putas de estrada
guardo esse sorriso amarelo,
feito línguas de fogo em pentecostes.


cara de fernando diegues
palavra de victor valente

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

da sabedoria humana


certa vez, os três irmãos à sala,
conversávamos.

o riso, o abraço,
a festa.

falávamos,
sempre e tanto e muito.
sem assunto ou motivo
senão a fática necessidade da voz alheia.

falávamos
como se o mundo não inventasse outros prazeres.

sabes isto, ju?
eu sei, disse ela, eu sei.

qual o quê.
ao chão das coisas,
o intervalo de gente sentencia:

eu sabo, bubu,
eu sabo.
e sai,
caminhando a saber de tudo.


cara de fernando diegues
palavra de victor valente