segunda-feira, 16 de julho de 2012

subjuntivo

quando tudo fosse linguagem,
haveria qualquer coisa de rima
em cada forma de poesia.

(mesmo essa, a poesia,
teria outros sabores
e texturas que meus olhos desconhecem)

mas meu corpo fala mais
e insiste nestes versos de sangue e carne,
de rima pobre ou rima alguma...

quando um dia tudo em mim fosse linguagem,
quem sabe eu nem mais seria....
quem sabe em mim algum se fosse...
quem sabe?...




cara de fernando diegues
palavra de victor valente

quinta-feira, 12 de julho de 2012



oásis

na confluência dos acasos,
o encontro trivial das horas:

a vida vai,
de agora em quando.

o mundo em paz é um balanço
onde os dias se repetem,
um a um.


cara de fernando diegues
palavra de victor valente

segunda-feira, 9 de julho de 2012

epiderme

são sebastião:
um corpo cravejado de milagres
sabe que a vida vale o toque.

um corpo sobre outro...
e a vida nasce.

há de a sina de inventar
pecados para a alma.

do corpo, não se sabe...

nele cabe apenas o instinto.
deuses inventando labirintos
sob a carne.





cara de fernando diegues
palavra de victor valente

quinta-feira, 5 de julho de 2012

a arte da guerra

é doce amar por entre os lábios da aurora:
voz e gesto derretidos na espuma
levam longe os olhos de quem ama.

amar,
que o amor é impreciso
e a estrada é solitária e muda.

passos a vagar dentro de si
como quem adentra um par!

o silêncio colore o asfalto dos abandonados
e revela a obliquidade dos sorrisos.





cara de fernando diegues
palavra de victor valente

segunda-feira, 2 de julho de 2012


tela

no corpo da mulher da noite
a língua se organiza sob a forma de palavra.

é a mulher a folha clara
em que escrevo.

dorme, assim, o meu poema sobre o leito,
à superfície do relevo feminino.

(ele desperta no advento da aurora
e sai à rua a semear minha palavra pelo mundo.)


cara de fernando diegues
palavra de victor valente

quinta-feira, 28 de junho de 2012

o revés do ópio

no dicionário do pensamento marxista
as palavras se embaralham em lutas de classe.

mais valia um trocadilho bobo...

a fé enorme disfarçada
sonha o mundo futuro do paraíso dos incrédulos.

Deus assume a forma das verdades que queremos
e os homens se repetem a disfarçar os mesmos sonhos.





cara de fernando diegues
palavra de victor valente

segunda-feira, 25 de junho de 2012

noah

no dia em que fui embora,
meus olhos cheios de mágoa
levavam o mar nas costas.

andava, e a maré se entornava
no encalço das palavras não faladas.

ondas cirundavam a memória,
e o acaso navegava em indizível solidão.

o peito mudo se banhava na saudade
e cobria a rua negra de silêncio e de concreto.






cara de fernando diegues
palavra de victor valente

quinta-feira, 21 de junho de 2012

sob a pele dos lençóis

cansado,
o corpo pede calma.
mas não sabe que a calma
é inimiga da matéria.
não sabe que a pressa,
dilatando veias,
intensifica olhares.

a vida anda lá fora
enquanto a casa dorme...
a vida, enorme, chama
enquanto a cama me embriaga.




cara de fernando diegues
palavra de victor valente

segunda-feira, 18 de junho de 2012

o transitivo

poema lido,
sou astro imaginário
a viajar pelo pacífico.

um bote suicida em queda livre.

a vida resultou vazia
e por isso me liberto.
quero mais que a realidade morna dos dias!

eu quero a perambulação dos pícaros,
o sal que corta a proa dos navios.

viver do instante
enquanto o instante existe.




cara de fernando diegues
palavra de victor valente

quinta-feira, 14 de junho de 2012





que a poesia me encontre
no abandono do silêncio,
ponto cardeal desconhecido,
presumido entre o cais e o sul.

eu hei de esperar sozinho.

se doida,
não me importa.

que a poesia venha coxa.

e entre os umbrais
verborrágicos do meu dia,
me toque a boca com a ponta da palavra.



cara de fernando diegues
palavra de victor valente

segunda-feira, 11 de junho de 2012

saber de si

bonito mesmo é o sentimento,
o espaço entre a expressão
e o universo consentido.

o homem se perde das palavras
e encontra o caminho para dentro
do abismo que o chão ignora.

morrer de olhos bem abertos
é ser fumaça de si mesmo,
é ser outono desfilando pela casa.

a vida passa o homem,
ignorante até daquilo que não sabe.




cara de fernando diegues
palavra de victor valente

segunda-feira, 4 de junho de 2012


no samba de roda
a mulher avisa:
ou eu ou a viola.














cara de fernando diegues
palavra de victor valente

quinta-feira, 31 de maio de 2012

bemol

abandonar a roupa pouca no acaso.
nas horas, deixar o dia -
caso ele corra.

a dor acaba
como acaba quase nada.

e a vida dura
como dura qualquer coisa.

canta,
e deixa a palavra desenhar o sentimento
pela boca.
cantar é eterno.


cara de fernando diegues
palavra de victor valente

segunda-feira, 28 de maio de 2012



pena capital

a dor aguda rasga a cara
e a cabeça limitada não suporta.

a vida parte em busca de silêncio,
o corpo fica e aguenta o peso da demora.

cara de fernando diegues
palavra de victor valente

quinta-feira, 24 de maio de 2012



tempo eu

é natural que seja pouco:
todo o sentimento
é só instante.

só a memória realmente dura.

e dizendo que amamos
nós dizemos que sofremos,
impregnando as coisas de sentido.

como a rua 
que é vazia à madrugada,
mas que amanhece abarrotada de pessoas.



cara de fernando diegues
palavra de victor valente

segunda-feira, 21 de maio de 2012

asa

nem todos os caminhos se constroem em linha reta,
nem toda linha reta se revela sob a forma de caminho.

andar, porque é preciso.
por sobre a forma inexata dos poemas,
o orvalho.

andar, que a vida é vaga.
dedos como asas vistando o amanhecer
das horas.

andar, a vida pede!
é água passeando pela cara
os passos de tão dura caminhada.

andar
        o
        passo
               exato
  descendo
rio
    abaixo
            na tontura.

toda forma de andar,
                              que o vento leve.
                                                      toda forma de andar,
que o vento cura.



cara de fernando diegues
palavra de victor valente

quinta-feira, 17 de maio de 2012

oito do cinco

o mundo cabe nos olhos de quem vê
as cores sob a forma de instante.

um homem anda 
por entre as caras da cidade
impregnando a face neutra das palavras:

seu passo materializa gestos de outono
e confissões de primavera.
a rua para para olhar sua passada.

o homem com lata coletora
inventa histórias de uma gente verdadeira,
carente do que inexiste.

é ver-se em olhos de alice,
os olhos dele.

- quem dera sempre a mesma infância! -
:o mundo desenhado do outro lado do espelho.




cara de fernando diegues
palavra de victor valente

segunda-feira, 14 de maio de 2012

vacante

que é o tormento,
mais que afogar-se de sentimento?

eu sou o mar que espreita a praia
e sonha os sonhos da terra fofa,
aquele que molha a areia e volta
na vaga do vento à popa.

um barco sozinho, vejo,
navega o meu sofrimento,
moinhos de sal invento
às costas do meu relevo:
são onda, areia e castigo
as marcas de andar comigo.

é onda, areia, é desejo
da praia que molho e beijo.

***

deixa eu ver a vida
pelos olhos de quem dorme!




cara de fernando diegues
palavra de victor valente

quinta-feira, 10 de maio de 2012
















sempre

quando a manhã, enfim, minguar inteira
e a noite colorir de frio o teu sorriso,
lembra de mim.

eu lembro, sim.

e quando a tarde te olhar cansada
e a inevitável solidão te der morada,
lembra de mim.

eu fui o teu problema preferido.

escolhe um dia pra lembrar do meu silêncio,
me chama!, como eu fosse aparecer
pra decorar tua varanda.

depois me mata.
me deixa ser um pouco
da fumaça dos cigarros dos passantes.

guarda qualquer coisa que sobrar.
o meu lugar é a tua estante preferida.


cara de fernando diegues
palavra de victor valente

segunda-feira, 7 de maio de 2012

hai kai

na beira da tarde
um aviso: tudo que arde
ou é cura ou é vício.













cara de fernando diegues
palavra de victor valente

quinta-feira, 3 de maio de 2012


memória auditiva


quando amanhã for frio
e não mais a brisa reavivar a espera - morna,
há de chegar de volta o tempo d'eu menino.

há de chegar de volta em olhos plácidos,
de uma sadia sonolência, agora ausente.

ignorando os honorários
e os dispensáveis compromissos do trabalho.

um ser latente admirava tudo isso!

virá, eu sei,
ignorante de qualquer merecimento,
ou culpa.

dos fatos que tornam qualquer vida besta
e irresistivelmente única.
o frio que aproxima a voz do fogo,
mais ancestral que o corpo,
mais ancestral que a bruma.

em nós, a pequenez
em cada bater de dentes.



cara de fernando diegues
palavra de victor valente

segunda-feira, 30 de abril de 2012

ensinamento

me encosta leve à tua janela
e entorta o corpo no meu ombro.

viaja as horas que a vida nega.

que a vida é má, meu bem, é a vida.
a vida é má pra quem não sabe o que fazer com ela.




cara de fernando diegues
palavra de victor valente

quinta-feira, 26 de abril de 2012

claritude

olhar para mim
até perder de vista
a mira.

olhar
até que os olhos se desfaçam na espuma
das lembranças.

um olhar além da luz e do desejo.
além, talvez, do céu, escondido atrás do azul,

apesar de tudo, belo.




cara de fernando diegues
palavra de victor valente

segunda-feira, 23 de abril de 2012


ou quem ou quando


tanto que se perde nos abraços que não damos...

aquele cheiro de roupa nova,
de alma velha conhecida.

um verso derramado no ouvido,
uma chance que não volta.

tanto que se perde nos abraços que negamos!

mais dois amigos vão-se embora
e quem sabe quando voltam? talvez quase.

a conta da saudade engorda a mágoa do que fomos,
seres cheios de ausência, rangendo os dentes pela noite fria.




cara de fernando diegues
palavra de victor valente

quinta-feira, 19 de abril de 2012

fotografia

sons que vêm de dentro...
saudades da véspera, de nós
e de mim.

lágrimas do corpo e praia,
risco entre a areia e a espuma.

brilho do mar
das garrafas em que me afogo.





cara de fernando diegues
palavra de victor valente

segunda-feira, 16 de abril de 2012

poema para embalar fernanda

menina dos olhos de fada,
onde guardas a madrugada?

que os meus olhos me imploram a luz da lua
como os bichos que se abrigam na manada.

dá-me os olhos teus de sombra
e leva embora o ocaso desta insônia
que me corta, feito seda sob o fio da navalha.

o breu noturno dos teus olhos de criança,
que a infância é boa, mas o fim é breve
e nunca tarda.






cara de fernando diegues
palavra de victor valente

quinta-feira, 12 de abril de 2012


03:03

rugas na pele da aurora.
a manhã se demora
e chega velha.

a moça vestida de noiva enleva a noite,
se entrega ao sono,
mas desperta.






cara de fernando diegues
palavra de victor valente

segunda-feira, 9 de abril de 2012

vado e teodoro

dona flor era mulher de um só marido.
vivo, conhecia um homem só.

mas a vida é mistério
e entre o céu e a terra há mais que meros suicídios
de ingleses tristes, vestidos de dinamarqueses.

mostra que o amor é rosa e desabrocha em seu próprio ritmo:
mulher, sem nunca ter traído, sabe ser fiel a dois.






cara de fernando diegues
palavra de victor valente

quinta-feira, 5 de abril de 2012



giz

velhas eram todas as horas,
os dias perdidos sem trégua.

velhos, os homens,
os segredos todos idosos,
melindrados de medo.

as roupas de cama,
os enxovais,
as moças, todas,
velhas por casar mais cedo.

velhas nas escadas,
brincando de bonecas,
fingindo a idade que não têm.

só a palavra mal dita
por entre os dentes
podres da miséria
redimia. 

ou quase.

triste a dor de quem nasce
no fim da vida.

no país dos iletrados
palavras não bastam.

são ideias como as outras,
velhas demais para acontecer.



cara de fernando diegues
palavra de victor valente

segunda-feira, 2 de abril de 2012

oremos

ai essa mulher
do nome de pedra e olhar molhado!

- são marolas da praia os olhos dela.
são cacos de vidro luzindo na água.

eu sinto a calma que contorna as coxas dela,
e gosto.
e gosto mais quando sinto mais de perto.

(bendito seja Deus por inventar o amor,
e num dia de humor ter feito o sexo.)



cara de fernando diegues
palavra de victor valente

quinta-feira, 29 de março de 2012

os gatos


vai ser melhor que o tempo
leve embora esses seus olhos de malícia.

eu repito eu te amo eu te amo eu te amo.

eu sento diante do computador e escrevo poesia,
às quatro horas da manhã da quarta-feira.

como quem foge de casa,
e sem coragem de fazê-lo.




cara de fernando diegues
palavra de victor valente


segunda-feira, 26 de março de 2012

felicidade veio vindo

é preciso lembrar-se sempre de que a vida
encontra os seus caminhos.

os percalços, bem verdade, colocamos.
inadvertidos que somos,
brincamos de inaugurar fronteiras,
depois choramos arrependidos.

mas a vida é cega e vê a estrada com os dedos.
toca o coração da terra e cria atalhos
para o bem que não queremos.






cara de fernando diegues
palavra de victor valente

quinta-feira, 22 de março de 2012

lastro


trovas de amor num pedestal,
a expressão exata da sandice.

palavras são rochedos imitando água,
palavras são palavras quando nada dizem.









cara de fernando diegues
palavra de victor valente

segunda-feira, 19 de março de 2012

sou uma casa


sou uma casa de lembranças amarguradas
em que o cansaço fez morada logo cedo.

visitas que houveram,
jamais passaram do jardim
descuidado em que te vejo.

rústico. bonito até,
quando o prelúdio da chuva
se antevê no anúncio da aurora.

eu tenho ninfas escondidas entre as margens
do meu sonho,
que te entorpecem e deixam longe:

o chão que me conduz a mim é seco,
embora o verde alegre em volta.

acostuma-te à intimidade falsa.
deita e dorme à minha porta.






cara de fernando diegues
palavra de victor valente

sábado, 17 de março de 2012

"o amor é uma companhia..."

    
     Em nossa primeira série do ano, um dilema anterior à composição: as caras enviadas pelo fotógrafo levaram o poeta a um sempre mesmo poema, “Pátria minha”, de Vinicius de Moraes. Em verdade, os versos de Vinicius preenchiam sem retoque os espaços deixados pelas fotografias, os hiatos entre uma imagem e outra. Que fazer então?

     A possibilidade de refutar a lembrança de versos como “Vontade de beijar os olhos da minha pátria” era distante e, sendo assim, decidiu-se pelo contrário: a composição seria um afundar-se não só neste poema, mas na obra de Vinicius e de todos aqueles que fazem a mitologia artística do poeta. 

Nessa aventura por Caetanos, Caios, Marinas e Pessoas foi ficando cada vez mais salutar o indício de que era uma idéia de brasilidade que se construía ali, isto é, os autores investigados eram responsáveis em grande parte pela noção de Brasil assimilada por Victor.

     Vale colocar, como já é possível de se ter percebido, que o repertório utilizado não é só de autores brasileiros. Portugueses, angolanos, cabo-verdianos, moçambicanos, os artistas da nossa língua, enfim, estavam envolvidos nesse processo, fazendo valer os pontos de aproximação e afastamento de nossas culturas - distintas - unidas pelo Português - também distinto. 

     Daí a composição: a pátria e o sujeito em seu relacionamento de amor e conflito. O flerte com a língua (roçada na língua de Luis de Camões), a mágoa vexada do passado colonial, a impossibilidade de separação entre um e outro (não há pátria sem o sujeito e o sujeito se constrói - também - em sua relação com a pátria).

O verso de Alberto Caeiro, indicando um já não poder andar só pelos caminhos, costura diferentes fases desse amor, colocadas sem a preocupação de uma sequência cronológica, como se a memória trouxesse à tona, num exercício de lembrança, momentos que deixaram marcas.

     Há nuances a serem exploradas, como a relação com o espaço fotográfico (a parede de azulejos, as versões da mesma bandeira), a disposição de pessoas (da turba à solidão), todos elementos que de alguma forma vão conduzindo o leitor por essa, tão sua, história de intimidade.



quinta-feira, 15 de março de 2012

"o amor é uma companhia..." - parte final



poema da aceitação


os dias de silêncio de ti
disseram tanto sobre mim
que eu mal saberia...

que respostas me daria a noite?
e em que lugar, calado e escuro?

foram teus dias sem resposta,
eu preso à estação, cansado e triste,
que brotaram essas palavras magoadas que declamo.

vergonha não há, e mesmo agora.
sei da marca lusitana em minha vida...
sei que em mim eu não seria, sem teres sido...

quem te enganou fui eu,
então não há que desculpar qualquer tolice.
deixa estar.

evoé, Tarsila!
as coisas mais benditas,
quem diria?



cara de fernando diegues
palavra de victor valente

segunda-feira, 12 de março de 2012

"o amor é uma companhia..." - parte 2



desliga você


do que adianta me dizer do que eu já sei?

é ser assim.
viver o caos do nosso encontro não convence.

amor de mais nunca foi o problema,
esquece isso.

é nosso mesmo, estranho amor,
vai me dizer o Caetano.

maracujá, não esquece,
depois me liga. te quero doce.

nós dois na rua, desconhecidos.
e a voz rouca da Marina sussurrando

'você me abre os seus braços
e a gente faz um país.'





cara de fernando diegues
palavra de victor valente

quinta-feira, 8 de março de 2012

"o amor é uma companhia..." - Parte 1



solitude


amo como o amor se faz, sereno.

eu prezo a calma dos abraços encostados,
eternamente tímidos.

pois é o amor,
dentre todas as construções humanas,
o passo dado.

e os arranha-céus e telescópios,
os carros e sirenes que desenham as cidades
e todas as ciências
são esboços mal logrados de ti.

um refúgio seguro
na solidão dos dias.





cara de fernando diegues
palavra de victor valente

segunda-feira, 5 de março de 2012


materno

a solidão é o vício que me apavora,
e manda embora qualquer doce companhia.

livros, quadros,
imagens de santo é o que me basta:
assassinei aos poucos cada marca de família,
os filhos que não tenho, que não quero.

os amigos que me restam
pouco valem, na verdade.

tristeza? não...
me encanta o coro dos silêncios!
e a sua voz enegrecida e sedutora,
feita memória nutritiva dessas horas de ocaso,
me afaga, qual a mãe que mora longe.




cara de fernando diegues
palavra de victor valente

quinta-feira, 1 de março de 2012



da segunda infância


nas mãos da moça
as bolhas brincam de sabão.
escorregam pelo vão das horas
de alma clara
e lavam as escadas de sonho.

na rua plana,
a infância segue o curso ladeira acima,
só para ela.






cara de fernando diegues
palavra de victor valente

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012


gênesis 1 


essas crianças inventadas em verso livre
não nasceram em igualdade de condições.

antes do tempo,
são mães.



cara de fernando diegues
palavra de victor valente

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012


    
partindo o verso em dois

foi tentando tirar do fio uma pipa
que meu filho perdeu a vida.
foi tentando tirar de mim o meu filho
que eu perdi a minha.












cara de fernando diegues
palavra de victor valente

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012


a estrela da manhã 

no dia em que Dalva pedira um irmãozinho,
levara uma surra que se lembraria até a idade adulta.


um menino era coisa de chegar em boa hora,
que apanhar sozinha já não tinha a menor graça.




cara de fernando diegues
palavra de victor valente

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012


sob a carapaça das horas 


atirada ao desencanto,
eu sou a ilha em que o homem rumina
a solidão em folhas verdes de palmeira,
flores.







por que pensas que me enganas, primavera?


cara de fernando diegues
palavra de victor valente

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012


roda morta

 

fetos abortados
poluem o meu sono.

morrem antes da hora
sem terem visto luz ou sombra.

(não era mesmo a vida
aquela coisa acesa em que a gente
se arranhava em tons grená?)

vem a aurora e eu já não durmo
- foi-se o tempo da manhã iluminada.

de súbito, levanto. 
abro a janela a tempo de ver anjos caminhando pela rua,
sem asas.


cara de fernando diegues
palavra de victor valente

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

sintaxe minha


eu que não desmereço a solidão
sei bem o valor da maior companhia,
a minha.

ouço os meus silêncios como a mulher que medita.

ab surdos?

                 (não)
                                 ad juntos!



cara de fernanco diegues
palavra de victor valente

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Ruah

minha irmã tateia o chão
como quem flutua pela primeira vez.

sibila em sim
e alterna em não,
voa presa à mesa da sacada.

vaga o passo primero à lua,
percorre as terras índias
e os seus aromas.

na cabeça de criança
a casa é um mundo de brinquedos naturais:
um móbile solto na intimidade do ar
e que se rearranja ao sopro.
cara de fernando diegues
palavra de victor valente

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

câncer

ai dessas tragédias
anunciadas nas tardes de junho,
prelúdio do inverno.

no plasma da tevê mais duas criancinhas
morrem saciando a minha fome de notícia.

debaixo das cobertas do horário comercial
o coração pulsa de dó.




cara de fernando diegues
palavra de victor valente